Se me esvaísse em sangue esta noite, minhas veias sorririam aliviadas. Secariam feitas rio em tempo de estiagem e ainda ocorreria um silêncio ensurdecedor em todo o mundo. Também sentir-me-ia aliviada, emitindo um som agudo. Daqueles que só acontecem quando dormem nossas crianças. Um som que vibrasse e deixasse por segundos o meu corpo em forma de z. Ou, quem sabe, criar um hieróglifo que, nem em duzentos anos de estudo, seria decifrado. E, se o fosse, seria algo de tão profundo, que seria traduzido em todos os idiomas e ensinado nas escolas. Ainda não consegui dizer o meu nome, é que o nome que eu tenho não se parece comigo. Queria lhe falar sobre coisas comuns, passar-lhe uma receita de mousse e, se tivesse mais intimidade, pedir-lhe um raio de sol. Mas eu não quero daqueles pequenos que iluminam as janelas dos asilos. Quero um bem grande, para iluminar o que sou, por dentro e por fora. (Extraído do livro “O Adestrador de Sentimentos” de Stella Tavares Publicado em 2007)
O ano era de 1929. A noite parecia mais escura do que de costume. Maria Ordones ouvia, no enorme rádio de válvulas, um programa de músicas. Na sala escura, só as luzes que escapavam das entranhas do aparelho iluminavam o que estava próximo.
Seu pai morrera há sete dias e ela chorava muito. Um choro entrecortado como o programa que ouvia, pelos comerciais de Aurisedina, Antisardina e o sabonete líquido Aristolino.
Doía-lhe o peito. Estava acostumada com a dor, mas nunca sentira uma tão intensa como aquela.
Crescera sem mãe e o pai era a sua vida. A linha divisória que fazia com que fosse respeitada e tratada diferentemente de uma agregada.
Seu pai vivia, ma maioria das vezes, fora da fazenda, tangendo a boiada e ela, apesar das enormes e ternas asas do pai, se obrigou a afiar a língua feito lâmina. Arma branca, usada em legítima defesa.
Só se desarmava e se permitia ser criança, quando via, através das amplas janelas coloniais, o pai voltando. Uma cena heróica, imponente, como uma enorme tela do Dia do Fico.
E agora, lá estava ela. Sozinha. Sem o descalçar de botas ou o dependurar de chapéu atrás da porta.
Solidário à sua dor, aquela enorme caixa começou a tocar o dobrado que seu pai mais gostava.
Maria Ordones ouviu o som de mãos que acompanhavam ritmadas o som da música. Tateou na mesa a esperança de sentir aquelas mãos hábeis e felizes, como se ele nunca houvera partido.
(Extraído do livro “O Adestrador de Sentimentos” de Stella Tavares publicado em 2007)
Cética, como sempre fui nunca poderia imaginar-me na sala de um adestrador de sentimentos. Estamos, há horas, esperando por ele. Na sala enorme de uma velha fazenda, mães amamentam, homens conversam e um senhor bem velhinho saboreia, de cócoras, o seu cigarro de palha. Nunca consegui ficar assim feito ele. O que mais me causa admiração é a paciência chinesa com que todos esperam, enquanto eu quase entro em ebulição. Sempre pensei que, se mudássemos para o campo, nunca mais sentiria stress. O que eu não imaginava era que um dia sentisse falta da poluição sonora. Sinto-me surda, ante tanto silêncio. De dois em dois minutos, confiro a lentidão dos ponteiros do meu relógio de pulso. A espera infinita é quebrada pelo ranger da velha porta se abrindo. O imenso portal emoldura o adestrador. Ele tem os cabelos brancos, desalinhados, os olhos profundamente azuis, e uma pele que, percebe-se fora clara um dia, resultado do sol escaldante daquele bendito lugar. Minutos depois, ele olha para um rapaz de camisa azul que fumava em pé na porta e faz sinal para que o acompanhe. Num ímpeto, atravessei a sala e disse a ele que aquele rapaz havia chegado depois de mim. Ele me sorriu e disse que não atendia por ordem de chegada. Decepcionada, senti meu rosto tremer: - Como? Nunca ouvi falar em tal coisa... Como se não me ouvisse, o rapaz entrou e fechou a porta. A mulher que amamentava disse calmamente: - Não é por ordem de chegada. Seu Gumercindo é quem escolhe as pessoas que serão atendidas primeiro. Depende da necessidade de cada uma. - Quem é esse homem, Deus? Ignorando a minha ironia, ela respondeu: - Depois das cinco horas, ele não atende mais. - O último que saiu ficou uma hora e quarenta minutos. Desse jeito ninguém será atendido mais hoje. De que planeta é esse homem? Ele não gosta de ganhar dinheiro? - Dinheiro? Seu Gumercindo não cobra! Ela tentou me explicar o que o adestrador fazia, mas disse que eu só entenderia, quando entrasse naquela sala. Entrar? Era tudo o que eu queria! Para minha surpresa, não se passaram cinco minutos e o rapaz de camisa azul cruzou a sala. Aproveitei a porta entreaberta e me antecipei: - Seu Gumercindo, estou esperando há horas. Preciso ser atendida ainda hoje. - Volte amanhã, minha filha. Dos sete que estão aguardando, só vou atender dois. Nem sei como atravessei a sala. Liguei a caminhonete e fui embora, na velocidade de um raio. Enquanto um lado meu se exasperava, o outro dizia mansamente que deveria voltar no outro dia. “Por que saí da capital?” “o que vim fazer neste fim de mundo?” sou um bicho urbano, só sobrevivo no asfalto. Chegando a casa, lavei o rosto e tomei um café quente. Meu marido entrou com as botas enlameadas e uma expressão feliz. Tentei colocá-lo em sintonia com meus sentimentos, enquanto contava o acontecido. Ele sorriu, olhou-me com olhos de pai e disse: - Esquece esse homem. É crendice desse povo. Se fosse um adestrador de gatos, cachorros, eu levaria nossos animais até ele, mas adestrar sentimentos... Meneou a cabeça e se encaminhou para o pomar. Tomei um longo banho e, mais calma, decidi que voltaria no outro dia. Ainda que fosse para desmascará-lo. Durante duas semanas não consegui ser atendida. Passei a levar lanches, a conhecer as pessoas pelo nome,trocar experiências. Pude perceber como era linda aquela fazenda e os seus azulejos portugueses. Numa manhã, andava pelo pomar, quando uma criança veio a meu encontro, dizendo que havia chegado a minha vez. Experimentei uma sensação nova. Atravessei sem pressa a sala. Seu Gumercindo me recebeu com um sorriso: - Agora está bem melhor! Nos próximos encontros, trataremos de outras necessidades que possam aparecer. - Do que o Senhor está falando? - O sentimento que regia a sua vida era a ansiedade. Queria que o mundo seguisse seu relógio interior que pulsava aflito. Acredita que poderia ser feliz aqui, com tanta urgência? - Em nenhum outro, muito menos neste. - Quanto tempo mais esperaria para falar-me? - O que fosse preciso... - Fico feliz por ter conseguido tão rápido Tive vontade de beijar-lhe as mãos, mas não o fiz. Agradeci-lhe somente e voltei para casa serenamente. Stella Tavares .
"Quando eu morrer não façam harpas dos meus nervos"
Deixem-nos presos ao que restou de lírico no corpo mudo. Cada respiração soe como uma nota oitavada prova de que meu corpo ardia. Não arrematem os meus desejos ou façam souvenires de minhas lembranças. Sobretudo você, José, porque são suas. Dormirão em mim como um poema.
(Extraído do livro "O Adestrador de Sentimentos" de Stella Tavares Publicado em 2007)
Palavras sempre funcionam como um passaporte que me conduz a lugares que nunca fui. São amortecedores, evitam impactos e atritos. Apaixono-me por elas e não necessariamente pelos seus significados. A palavra que mais me encanta é MOVIMENTO. Encanta-me pelo som e também pelo significado. Dá uma sensação de renovação, de aglomeração, de bons resultados. Quando se faz um movimento em prol de alguma causa normalmente obtém-se bom resultado. Lembra-me também um passo de dança, a resposta da água quando se atira pedrinhas no lago. Acabei de carimbar o meu passaporte e a palavra movimento já me conduziu a todas essas imagens. Quando crio um personagem as palavras se multiplicam, salpicam, mesclam quase como um mosaico. São palavras do personagem e não minhas. São eles que me conduzem, eles próprios desenvolvem suas histórias, seus desfechos. Em alguns trechos até encontro minhas digitais pelo texto, afinal fui eu quem escreveu, mas várias vezes já fui surpreendida por eles. Assim como Júlia, a personagem principal de “No convés do tempo” muitas vezes nos misturamos, nos transfundimos, mas ela sempre vence nossas semelhanças e apresenta-me suas peculiaridades. Enquanto escrevia No convés do tempo, andei em companhia de Júlia por todos os caminhos, visitei sua casa, sua infância, sua cidade, permaneci ao seu lado até quando ela entrou em vida vegetativa. Acompanhei-a vida a dentro e ao mesmo tempo permaneci junto ao seu leito, aguardando ansiosa por algum MOVIMENTO